A coordenadora de pesquisas do Centro de Estudos em Sustentabilidade e Gestão de Excelência da Fundação Getulio Vargas (FGV CESGE), Carmem Migueles, afirma que os brasileiros possuem elementos culturais que os levam a ter uma propensão a causar grandes acidentes. Segundo ela, o resultado de mais de 16 anos de pesquisas do FGV CESGE sobre os fatores intangíveis que colaboram para aumentar os acidentes de trabalho no Brasil mostra que uma das maneiras de neutralizar essa vocação é reestruturar as culturas organizacionais.
“Temos que trabalhar a cultura das organizações como mecanismos de integração para conseguirmos chegar perto do ‘acidente zero'”, ressalta Migueles, que completa: “a distância entre estado e sociedade e entre o topo e a base das organizações é uma das correlações principais de acidentes no trabalho em todo o mundo”.
Ainda de acordo com a professora da FGV, existem três elementos da cultura nacional que interagem e criam o contexto propício para acidentes: a alta distância de poder, forte aversão à incerteza e baixa confiança. “Esses fatores, derivados de métricas globais que comparam culturas nacionais, contribuem para criar fortes assimetrias de informação entre o topo e a base, além de vícios organizacionais que são ocultos para os membros das corporações. É possível neutralizar esses fatores via desenvolvimento das culturas organizacionais, mas a forma como desenhamos a governança das corporações dificulta muito esse processo e, sem querer, aumenta os riscos para os executivos que quiserem de fato enfrentar esse desafio”, explica.
Carmem Migueles acrescenta também que vários estudos globais e dois trabalhos vencedores de prêmios Nobel de economia apontam para o papel da confiança em ganhos de produtividade, competitividade e gestão de riscos. Com base neles, a professora da FGV garante que é possível verificar que países onde há mais confiança são mais prósperos e as empresas são mais seguras. “Mas nos comparativos globais (de acordo com o World Values Survey), o Brasil aparece como o país onde as pessoas têm propensão a confiar no mundo. Esses estudos mostram que sociedades mais heterogêneas e mais desiguais tendem a ter baixa confiança. Com baixa confiança, desenvolvemos também forte aversão a riscos e propensão em controlar incerteza”, cita.
“Por essas razões, criamos normas, padrões, procedimentos e monitoramento, mas a intercessão desses fatores dificulta a evolução da capacidade de trabalho de maneira interdependente e colaborativa”, completa Migueles. Segundo ela, quando as pessoas colaboram de maneira ordenada, conseguem reduzir mais os efeitos negativos da heterogeneidade e a desigualdade sobre a confiança.
Exemplo da pesquisa – Carmem Migueles diz ter descoberto que organizações que sofrem um forte risco pessoal e profissional só conseguem operar se tiverem forte confiança. Os pesquisadores estudaram a propensão à confiança em forças policiais do Brasil e de outros países. “Replicamos as métricas globais e descobrimos que o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) tem uma propensão à confiança maior até que os Marines, dos Estados Unidos. Isso faz com que o Bope tenham um número de acidente muito menor que a média global. O Batalhão está em operação desde 1978 e teve nove fatalidades em serviço. Pouco, se compararmos com outras atividades laborais e ao risco maior da atividade policial”, avalia a professora.
Solução – Carmem Migueles aponta que, para reduzirmos os acidentes de trabalho, é preciso que a liderança compartilhe mais responsabilidades. “Em vez de o líder dizer o que precisamos fazer, ele precisa ajudar as pessoas a entender seus desafios e colaborar na descoberta da melhor maneira de resolvê-los. Isso aumenta a confiabilidade e previsibilidade e reduz a tensão”, propõe.
Carmem Migueles, no entanto, diz que precisamos repensar o modo de funcionar dos nossos conselhos de administração. Segundo ela, pelo fato de o Brasil possuir histórico escravagista, com lógica extrativista e economia focada em commodities, segue o entendimento de que deve aumentar a escala e reduzir o preço unitário e de exportação. Esse foco gera pressão desordenada por toda a hierarquia e penaliza quem de fato quer resolver problemas como o da segurança.
“Pensando ainda como produtores de commodities, não estamos preocupados em gerenciar inovação e excelência operacional. Quando observamos nosso avanço no ranking global de competitividade, verificamos que a posição do Brasil nesse ranking varia de acordo com os preços das commodities no mercado global. Não lideramos. Não abrimos espaço para o desenvolvimento das nossas organizações na direção de maior valor agregado. Temos que parar esse ciclo vicioso. Nós temos tudo para liderar uma dinâmica de inovação e trabalhar com empresas mais seguras e competitivas. Para começar, é necessário que os conselhos parem de recrutar executivos com focos financeiros de curto prazo. São eles que estão criando riscos e perdas para os acionistas, como riscos de acidentes de trabalho”, conclui.