Em um país com mais de 5,5 mil municípios, é de se esperar que a sujeição ativa de tributos municipais suscite controvérsias, principalmente se estamos a falar de tributos pessoais (“não reais”) incidentes sobre o consumo de bens ou serviços, como é o caso do ISS.
Se a esse quadro potencialmente complexo acrescermos uma jurisprudência vacilante e superficial, a complexidade tenderá ao caos. Pois o STJ, a nosso ver e com todas as vênias, acaba de dar uma lamentável contribuição para agravar esse cenário, com o recente julgamento do Recurso Especial 1.439.753.
Segundo nos ensina Aires Barreto, é preciso definir “quando” para saber-se “onde”[1]. Identificado adequadamente o momento de ocorrência do fato gerador (critério temporal), o local de ocorrência (critério espacial) e, a cavaleiro deste, o sujeito ativo (critério pessoal) decorrerão quase que naturalmente.
O critério temporal da norma de incidência do ISS pressupõe, a seu turno, a escorreita percepção da própria materialidade tributada pelo imposto (critério material), fato que nos remete à necessária e conhecida distinção entre atividade-meio e atividade-fim do prestador de serviço.
O fato gerador do ISS terá ocorrido quando o esforço material prometido pelo prestador estiver concluído. Todos os expedientes preparatórios atuados pelo prestador, porque não são o objeto da prestação jurídica por ele prometida, não deflagram, ainda, a incidência do imposto; e, se não deflagram a incidência do imposto, é de antemão irrelevante saber onde se realizam.
Se apenas a atividade-fim atuada pelo prestador é relevante ao critério material de incidência, apenas o local de ocorrência da atividade-fim é relevante ao respectivo critério espacial.
O local de ocorrência da atividade-fim será, em alguns casos[2], o local onde o prestador efetivamente a executa; para outros e mais numerosos casos[3], houve por bem o legislador complementar estipular, mediante legítima ficção jurídica, que o local de execução do serviço será o do estabelecimento engajado de sua execução, leia-se, da execução da atividade-fim[4].
Assim, embora o sujeito passivo possa manter diversos estabelecimentos distintos, será considerado estabelecimento prestador — atraindo a sujeição ativa do imposto — somente aquele afeito ao desempenho do núcleo do esforço prometido ao contratante.
No julgamento do AgRgREsp 1.251.753, em 2011, o STJ encampou esse entendimento. O caso envolvia uma lavanderia de roupas, que mantinha uma loja no município capixaba de Vitória, unicamente para recepção dos clientes e coleta das roupas a serem lavadas; estas eram, ato contínuo, remetidas pela lavanderia a outro estabelecimento seu no município de Cariacica, onde estava instalado o maquinário que efetivamente fazia a lavagem.
Decidiu a 2ª Turma do STJ, na ocasião, que o ISS sobre serviços de lavanderia era devido a Cariacica, pois em seu território estava situado o estabelecimento encarregado da atividade-fim encomendada pelo contratante. Confira-se:
“No presente caso, o Município de Vitória (recorrente) não é o local da prestação de serviços, mas sim onde se executam as atividades de captação da clientela (atividade meio). Portanto, não pode o recorrente ser beneficiário do tributo”[5].
O caso objeto do REsp 1.439.753 recém julgado é em tudo equiparável a este, embora envolva não uma lavanderia, mas um laboratório de análises clínicas, que mantinha ponto de coleta do material biológico no município pernambucano de Jaboatão dos Guararapes e, na capital Recife, o estabelecimento com toda a estrutura pessoal e tecnológica que realiza a análise encomendada.
Em diametral divergência com o acertado entendimento firmado pela 2ª Turma no precedente da lavanderia capixaba, decidiu a 1ª Turma que o credor do ISS devido pelo laboratório pernambucano era o município de Jaboatão dos Guararapes.
À guisa de fundamento, o ilustre relator, ministro Arnaldo Esteves de Lima, refere, inicialmente, o recente REsp 1.060.210, no qual o tribunal esteve às voltas com a sujeição ativa do ISS nos serviços de leasing. Nesse precedente, a dúvida estava em saber se o ISS era devido ao município do estabelecimento sede da arrendante ou ao município da loja vendedora do veículo adquirido via leasing.
O quadro fático do leasing é, a nosso ver, menos complexo porque não envolve dois estabelecimentos do prestador; as alternativas são (i) tributar no local do (único) estabelecimento do prestador ou (ii) em um local onde o prestador sequer possui estabelecimento (loja de veículos). Na hipótese do laboratório de análises clínicas, está-se diante de dois estabelecimentos do contribuinte; é dizer, não se nega que o ponto de coleta configure, tanto quanto o centro de análise, uma unidade econômica com estrutura pessoal e física adequada ao fim a que se presta. A questão é saber qual dos dois estabelecimentos merece o qualificativo de “prestador”.
Embora não estivesse, ali, diante de hipótese de dois estabelecimentos, o STJ deixou claro, no REsp 1.060.210, que o estabelecimento prestador será aquele que congrega o núcleo da atividade de prestar serviço. Eis trecho bastante significativo do excelente voto do ministro Herman Benjamin:
“Sendo o financiamento o cerne desse negócio jurídico, premissa fixada pelo egrégio STF, parece evidente que o estabelecimento prestador é o da instituição financeira onde se concentram essas atividades essenciais (aprovação do crédito, acompanhamento dos pagamentos, cobrança e, eventualmente, retomada do bem)”.
Portanto, se é que o REsp 1.060.210 tinha alguma valia para o caso sob análise no REsp 1.439.753, seria para respaldar justamente entendimento contrário ao do relator.
Acompanhando o relator, os ministros Ari Pargendler e Benedito Gonçalves acrescem que o imposto deve assistir ao município de coleta porque nele seria produzida a riqueza tributável.
O raciocínio parece-nos equivocado. A riqueza tributada é a do prestador, não a do tomador. O prestador é o contribuinte, ele é quem deve revelar capacidade contributiva. A riqueza é tributada, enfim, em momento no qual o preço já está nas mãos do prestador, e este a auferiu em razão dos esforços materiais que realizou no município onde efetua a análise laboratorial. Portanto, a riqueza — do prestador — é gerada neste município, e não no município de coleta.
Os votos vencedores, contudo, tiveram o mérito de, ao menos, reconhecer a unicidade da atividade exercida pelo laboratório. Seu erro foi, como visto, dar imerecido valor à parcela acessória e preparatória dessa atividade, em detrimento do seu núcleo.
Muito pior, no entanto, andou o voto vencido proferido pelo ilustre ministro Sérgio Kukina, que considerou a “coleta de materiais biológicos como um serviço autônomo relativamente à análise clínica”, pelo fato haver, na lista de serviços, um item (4.20) próprio para o serviço de coleta. Para esse ilustre ministro, o valor final pago pelo cliente deveria ser rateado — sabe-se lá sob que critérios — entre (i) serviços de coleta do item 4.20, gerando ISS para Jaboatão e (ii) serviços de análises clínicas do item 4.02, gerando ISS para Recife.
A existência de item próprio não pode nunca justificar o fracionamento de uma única e mesma relação jurídica mantida entre prestador e tomador. Aliás, a distinção conceitual entre atividade-meio e atividade-fim decorre justamente da existência de itens potencialmente aptos a enquadrar a atividade-meio.
A prevalecer esse entendimento, nós, advogados, não estaremos sujeitos à tributação dos nossos honorários unicamente sob o item 17.14 da lista do ISS. Ao digitarmos a petição para a qual fomos contratados, prestaremos também o serviço do item 17.02; ao arquivarmos os documentos do cliente em nosso arquivos, prestaremos os serviços do item 11.04. Os exemplos multiplicam-se com um rápido passar de olhos na lista da LC 116/03.
Entendemos, enfim, que o STJ definitivamente não aplicou o melhor direito ao julgar o REsp 1.439.753, e o ArRgREsp 1.251.753 é o paradigma ideal para que, em eventual embargos de divergência, a 1ª Seção desfaça o equívoco e realinhe a jurisprudência do tribunal às melhores lições doutrinárias acerca do ISS.
[1] ISS na Constituição e na lei. São Paulo: Dialética, 2009. p. 329.
[2] Hipóteses dos incisos do art. 3º da LC nº 116/03.
[3] Hipóteses do caput do art. 3º da LC nº 116/03.
[4] Nesse sentido, o seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Herman Benjamin no REsp nº 1.060.210: “Tanto na vigência do DL 406/1968 como na da LC 116/03, o legislador reconheceu que o ISS é devido no local do fato gerador. Ocorre que, como nem sempre é fácil ou mesmo possível identificar esse local sem critérios normativos objetivos, determinou-se a ficção legal de que ele (o local do fato gerador) corresponde ao do estabelecimento prestador do serviço, como regra”.
[5] REsp nº 1.251.753. Rel. Min. Humberto Martins. v.u. j. 27.9.11.
Paulo Roberto Andrade é advogado, mestre em direito tributário pela USP e sócio do escritório Tranchesi Ortiz, Andrade e Zamariola Advocacia. Conselheiro da 4ª Câmara do Conselho Municipal de Tributos da Secretaria Municipal de Finanças de São Paulo. (Com Informações da Revista Consultor Jurídico)
Fazer com que qualquer negócio opere regularmente nas questões fiscais manterá a empresa longe de…
Se tem uma coisa que Donald Trump adora é uma boa guerra comercial. O ex-presidente…
Ter um CNPJ pode ser o sonho de muita gente, mas quando as dívidas começam…
O cenário para as pequenas indústrias brasileiras já não era dos melhores, mas agora ficou…
Reforma do Imposto de Renda à vista! Mas calma, antes de soltar fogos e comemorar…
Boas notícias para o bolso dos brasileiros! Mas calma, não precisa sair correndo pro mercado…