A não incidência do ICMS sobre as transferências interestaduais entre filiais trata-se de uma discussão antiga.
A Lei Kandir, como é popularmente conhecida a Lei Complementar n. 87/96, trouxe avanços, bem como novos problemas jurídicos aos aspectos gerais da tributação do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Ainda em 1996, quando surgiu para substituir o Convênio ICM n. 66/1988, antigo e provisório ordenamento que regulava, até aquele momento, as disposições do art. 146, inc. I a III, da Nova Constituição, não eram raras as críticas, por parte dos representantes dos entes federados, acerca dos prejuízos que poderiam ocorrer a esses.
Por parte dos contribuintes, crescia o número de processos judiciais questionando as interpretações de dispositivos pouco claros, que, ainda hoje, dispõem desde institutos inerentes à substituição tributária, cf. os art. 8º, 9º, e 10, até em relação a períodos de apuração do imposto, aos moldes do art. 24.
NÃO INCIDÊNCIA DO ICMS
Um desses desdobramentos fora recentemente concluído, via o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC), n. 49, proposta ainda em 2017, pelo Estado do Rio Grande do Norte, em que se propôs aferir a constitucionalidade do trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, dispostos ao art. 11, §3º, inc. II, ao art. 12, inc. I, e art. 13, §4º, todos da Lei Kandir.
Ocorre que, apesar dos argumentos lançados pelo estado potiguar, não há possibilidade de que haja a incidência tributária sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, uma vez compreendidas, de forma mais clara, as regras de competência delineadas à Constituição.
Explica-se. Em uma operação comum de compra e venda, ou ainda, serviços de transportes intermunicipal, interestadual e serviços de comunicação, há alguns elementos claros que permitem tal definição, qual seja, de operação.
Imagine-se a seguinte situação: após sair do trabalho, o contribuinte passa no mercado do bairro, toma alguns produtos e realiza a compra desses, que, finalmente, após longa cadeia tributária anterior, o ICMS incide de forma final, e, a esse último, é repassado integralmente.
Nesse cenário ideal, a operação devidamente conclusa, pois, como a intuição corretamente aponta ao caso, houve a circulação jurídica da mercadoria, que, de forma onerosa, transfere-se do mercadinho do bairro em favor do contribuinte.
Esse experimento mental torna de fácil acesso a compreensão da inconstitucionalidade do dispositivo da Lei Complementar em comento, i.e., a busca pela tributação do mero trânsito de mercadorias, mesmo que esse não se revestisse de transferência jurídica: no coloquial, criava-se tributação de produto que “não trocou de mão”.
Debruçando-se sobre a análise jurídica, a Corte Constitucional, assim julgou a matéria: “A hipótese de incidência do tributo é a operação jurídica praticada por comerciante que acarrete circulação de mercadoria e transmissão de sua titularidade ao consumidor final.” (ADC 49, Relator(a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 19/04/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe084 DIVULG 03-05-2021 PUBLIC 04-05-2021).
Novamente, trazendo para o campo informal, possibilitando maior compreensão, imagine-se uma empresa que possui um imóvel na localidade “A” de uma determinada cidade do estado do Paraná, em que são produzidos sacos de arroz. Essa mesma empresa realiza a impressão das marcas nos sacos de arroz, antes da venda. Porém, tais impressões não são realizadas no local “A”, mas sim, atravessam a fronteira para o estado de São Paulo, em cidade próxima.
No cenário anterior é que, mesmo não havendo qualquer circulação jurídica, o que fica evidente pela ausência de terceiro adquirente dos produtos fabricados, ou pela onerosidade operação de transporte, haveria, no momento da troca de estabelecimentos, tributação em ICMS.
A situação então, que já havia se configurado inconstitucional, com os diversos julgamentos no STF, era de intensa batalha entre os estados e contribuintes, àqueles primeiros buscando, incessantemente, validar e utilizar a norma sublinhada. Não que não houvesse argumentação em contrário, que buscava favorecer as Fazenda Públicas: de fato, havia.
Nos fiscos estaduais reinava a ideia de que, por terem identificações fiscais diferentes, haveria possibilidade de se entender tais operações como tributáveis pelo ICMS, por exemplo. Ocorre que esse, como tantos outros argumentos de natureza puramente burocrática, deixava marginalizados conceitos primários, como a personalidade jurídica da empresa, a qual não é dividida a cada CNPJ aberto.
SEM AUTONOMIA JURÍDICA
Em outras palavras, o que já era senso comum ao final da década de 1990, é que as filiais, apesar de terem outros cadastrados fiscais, não conferiam a essas a autonomia jurídica, inexistindo independência entre matriz e filial, nesse contexto.
Nesse mesmo esteio, destacam-se as palavras do Min. Marco Aurélio, ainda em 1991, quando do AgRg no AI n. 131.941-1, em julgamento de caso que envolvia a pesagem de produtos em estabelecimento diferente da matriz: “A expressão norteadora do preceito pressupõe, assim, que a circulação se faça com nítido conteúdo econômico, ou seja, implicando transferência da respectiva propriedade a terceiro. Daí a alusão ao vocábulo “operações”, não se podendo enquadrar como tanto o mero fato de um produtor, industrial ou comerciante, proceder à movimentação de um estabelecimento para outro visando, como no caso em questão, à simples pesagem”.
Fato é, como visto, que o assunto não é novo, e já em 1996, o e. STJ fixou a Súmula n. 166, a qual versava que “não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte”, mesmo posicionamento que, à mesmíssima Corte Legal, fora reafirmado uma década depois, com a fixação do Repetitivo n. 259/STJ, via o apreço do leading REsp n. 1.125.133/SP.
Agora, contudo, tais operações estão devidamente asseguradas, uma vez que, em vias de controle concentrado de Constitucionalidade, o julgamento da ADC n. 49, produzindo seus efeitos erga omnes, ex tunc, e vinculantes aos demais Poderes, não há necessidade do ingresso prévio ao judiciário contra as leis que ainda tributavam as operações de mero trânsito.
O interessante, também, até aqui é observar a exaustão do tema, ao que, com a declaração de inconstitucionalidade realizada à via adequada, finalmente ocorre o encerramento do tema selecionado, e a subtração de mais uma controvérsia dos escaninhos do judiciário, agora de forma definitiva.
Representa, também, mais um dos triunfos dos contribuintes estaduais sobre os entes. Resta saber agora quais serão os próximos capítulos e desdobramentos das soluções as controvérsias geradas pela Lei Kandir.
Por DR. GUILHERME PRIESNITZ – OAB/PR 107.849 –, advogado no Veríssimo & Viana Advogados, com sede em Maringá/PR